MadBizarrice: Caverna de Sibila - o caminho para o submundo


O lugar era hostil, repleto de lagos de magma quente, colunas de fumaça e vapor emergindo de rachaduras e buracos no solo. O ar era tomado por um cheiro de enxofre quase insuportável. A vida certamente não era compatível com aquele ambiente. Próximo dali emergia um gigantesco vulcão que por vezes parecia furioso com a presença de intrusos no platô. Mas nada naquilo deteria o nobre general troiano e sob as ordens do deus Apolo, ele buscou pela entrada da caverna misteriosa que guardava os portões para o submundo em Cumae. Cem portas, mil aberturas, um lugar que era fácil de entrar, mas quase impossível de sair. Apenas uma pessoa poderia ajudá-lo nessa tarefa: a profeta de 700 anos de idade chamada Sibila Cuma, a única moradora do lugar. Seguindo suas instruções que ecoavam pelas câmaras em forma de canto, Enéias desceu pela misteriosa caverna até o submundo governado por Hades. Tudo o que ele precisava era de alguns conselhos de seu velho e já morto pai Anquises. Em seguida partiu em uma jornada que culminaria na fundação de Roma, exatamente como Sibila tinha previsto anteriormente. Essa é a história que Virgílio nos conta no livro VI das Eneidas.

Mas quem seria a Sibila Cuma? Profeta desde que nasceu, era também uma sábia que tinha ganhado a imortalidade do deus Apolo. A lenda conta que viveu 9 vidas humanas de 110 anos, mas esqueceu de pedir juventude e seu fim foi trágico. Transtornada por suas visões proféticas, Sibila as retratava em folhas que espalhava pelas paredes e chão da caverna que morava, nos campos devastados de Phlegræan.

Sibila e Enéias

Tais campos tem uma vasta fama na mitologia. Foi aqui que Hércules derrotou os titãs que já se preparavam para tomar o Monte Olimpo. Era também o local onde Efesto, o deus do fogo, morava. Até mesmo Odisseu das Ilíadas deu uma passada por ali para descer até o submundo e consultar os mortos. Por outro lado, os campos de Phlegræan também serviram por milênios como um grande centro de SPA para curar diversas doenças com os banhos nas piscinas termais, lama vulcânica e banhos de vapor. Mesmo assim os antigos ainda consideravam o local como um marco na Terra, um lugar em que o submundo se juntava à superfície e que era passagem direta para lá. Era literalmente o inferno na Terra.


Cumae fica próxima do mar, na costa norte da baía de Nápoles. O platô inicialmente era território grego, uma colônia próspera que trouxe avanços para a região por séculos até finalmente ser tomado pelos etruscos e depois pelo que ficou conhecido como império romano.

Por séculos, aventureiros e especialistas investigaram os arredores do vulcão italiano Vesúvio, que ficava exatamente na mesma região dos campos de Phlegræan. O lugar inóspito graças à alta atividade vulcânica na época dos antigos gregos e romanos ganhou fama de ser o preferido para lendas sobre magia e profecia. O pico de exploração talvez tenha sido na Idade Média, quando expedições intermináveis de aventureiros ocorriam em busca dos portais do submundo que a caverna de Sibila oferecia e que eles achavam ser os “portais do inferno”. Inferno, aliás, é uma definição errada porque os antigos gregos e romanos entendiam que todo mundo que morresse iria para o submundo e lá permaneceria para sempre, não importando se você era bom ou ruim. O “inferno” como conhecemos é mais uma definição cristã.

Sem provas concretas, sem sequer um mapa ou dados geográficos que fossem suficientes para se determinar ao menos uma ideia sobre a localização do complexo de cavernas, nenhuma das expedições obteve sucesso. As cavernas de Sibila, como ficaram conhecidas, pareciam ser só parte de uma lenda antiga, algo que a mitologia explicaria, mas que na realidade não parecia existir de tão surreal que era.

Em 1932 o arqueólogo italiano Amedeo Maiuri escavava os povoados ao redor do Vesúvio em busca de respostas sobre a mítica destruição das cidades de Pompéia e Herculano em 79d.C.. Sua equipe investigava algumas ruínas quando deu de cara com uma entrada um tanto quanto discreta. Túneis perfeitamente escavados surgiram bem diante dos olhos dos arqueólogos. Era na verdade um complexo de túneis muito bem construídos nas rochas vulcânicas. Acredita-se que o complexo vinha do coração de uma montanha e chegava ao centro da cidade. A arquitetura foi identificada como etrusca, o que coincide com a época em que Sibila supostamente teria vivido.

Entrada discreta.

O complexo se encontra próximo de outras estruturas igualmente bem planejadas e antigas, como a Crypta Romana e a Grotta di Cocceio que foi escavada na montanha para dar acesso ao lago Avernus (ou Aornos em grego) que fica numa antiga cratera vulcânica de 3,2km de circunferência. O portal para o submundo ficava lá e era descrito de uma forma totalmente macabra por Virgílio:

"Havia uma caverna enorme e profunda com pedras irregulares e pedras debaixo dos pés e uma boca aberta guardada por madeiras escuras e as águas negras do lago. Nenhum pássaro poderia passar do seu vôo sobre esta caverna e viver, tão mortal era a respiração que escorrera da garganta negra e subiu ao cofre do céu. Daí o nome grego, 'Aornos', 'o lugar sem pássaros' ".

De fato o lago solta colunas de fumaça tóxica às vezes, o que pode explicar o fato dos pássaros ficarem bem longe dele.

Lago Avernus

Virgílio afirmava ainda que para que Enéias pudesse chegar ao submundo, ele tinha que entrar pela caverna de Sibila e passar pelo lago Avernus. A realidade, entretanto, é que ele precisaria fazer outro caminho porque o complexo não dá passagem para o lago, o que pôs em xeque a veracidade do conto e principalmente se as cavernas eram realmente as de Sibila. Na verdade, há uma gruta chamada “Gruta de Sibila” (Grotto della Sibilla) que dá passagem para o lago Avernus, mas ela não tem ligação alguma com as cavernas, inclusive fica na direção oposta. As cem portas também nunca foram encontradas, mas depois das escavações notaram que havia tantas janelas expostas que ninguém sabe dizer ao certo como nunca notaram os túneis antes.

Outro fato interessante é que, diferentemente do divulgado por Virgílio, as cavernas têm apenas 5m de altura e entradas trapezoidais. O complexo que fica a pouco mais de 5m de profundidade, conta com várias galerias laterais e algumas cisternas. Tudo isto faz muitos especialistas contestarem se as cavernas são mesmo as da mitologia.


Há um porém: os templos de Júpiter (era outro nome de Zeus, mas na cultura romana) e de Apolo ficam muito próximos dessas cavernas, o que faz muitos arqueólogos não descartarem a possibilidade delas serem as reais cavernas de Sibila. Sem contar que a paisagem ao redor condiz com a descrita por Virgílio.

Infelizmente os arqueólogos não puderam se aprofundar muito, pois o lugar é extremamente hostil: gás tóxico, fumaça e altíssimas temperaturas eram constantes. O risco de acidentes era alto demais, principalmente o de envenenamento por enxofre.

As expedições foram abandonadas até os anos 60, quando o arqueólogo britânico Robert Paget, seu amigo Keith Jones e um grupo de voluntários decidiu se arriscar pelo inóspito complexo de cavernas. Usando roupas de amianto para se proteger do calor insuportável (e não eram nem um pouco confortáveis), eles tiveram que enfrentar uma densa fumaça que limitava muito a visibilidade, passagens secretas que pareciam ter sido feitas para confundir qualquer curioso que adentrasse o local sem autorização, gases de enxofre e passagens estreitas demais que impediam que parte do equipamento passasse. Avançaram por 150m e só pararam porque as passagens estavam bloqueadas com detritos. Paget concluiu que os túneis eram parte de algum ritual antigo e isso se confirmou com a existência de vários nichos nas paredes para se colocar velas, incenso ou até oferendas. A entrada dos túneis tem orientação para o nascente, o que determinava o solstício, outro indicativo forte.


Não é incomum que os antigos construtores planejassem suas estruturas de forma a impedir a entrada e saída de intrusos e ladrões. Egípcios e astecas eram mestres nesse assunto, mas os gregos e romanos não ficavam muito atrás. O próprio fato de as entradas serem tão estreitas fez Paget se questionar se não era de propósito, afinal dificultava a exploração do local. Algumas entradas só podem ser encontradas quando se chega muito perto delas, pois tem um formato de “S”. O grande número de câmaras também era uma evidência de que podia ser um pequeno labirinto para prender os que tivessem a ousadia de xeretarem por lá. Haviam ainda câmaras lacradas, escavações que pareciam não ter sido terminadas e muitas câmaras sem acesso graças aos desabamentos.

Em uma câmara mais adiante, sob um calor infernal de 49 graus, a equipe encontrou uma passagem secreta em ângulo reto que dificilmente poderia ser encontrada por um desavisado. Por ela era possível chegar ao que eles chamaram depois de “rio Styx” (na mitologia o rio Styx é onde fica o barqueiro que espera para levar as almas dos mortos por uma moeda), um rio subterrâneo de água borbulhante, extremamente quente e sulfurosa. De um lado havia uma rampa que levava a lugar algum, mas do outro era possível chegar ao que Paget chamou de “Santuário Oculto”. Uma escadaria adiante desembocava nos tanques de água usados para suprir as piscinas termais romanas da época e que ficavam na superfície. Os antigos romanos tinham construído ali um SPA chamado de Baiae.

Rio Styx

A expedição levou uma década para ser concluída. Paget, no entanto, acreditava que os túneis poderiam ter servido de inspiração para Virgílio escrever as fascinantes histórias de Eneidas. Naquela época não era incomum que os sacerdotes usassem lugares do tipo para convencer incrédulos de que o submundo existia, inclusive Virgílio poderia ter sido um desses incrédulos que, ao ver um complexo de túneis tão bem feitos e um rio de água borbulhante, poderia ter imaginado que realmente havia algum portal para as terras de Hades. Sabe-se que ele morava próximo da região.

Alguns arqueólogos realmente acreditam que as cavernas inicialmente tenham sido construídas com propósitos ritualísticos e que depois viraram uma estrutura que fornecia água para as piscinas termais. Paget formulou uma teoria interessante sobre isso: o sistema de túneis pode ter sido feito para que os sacerdotes simulassem uma visita ao mundo dos mortos. As altas temperaturas, o lugar pouco iluminado e cheio de câmaras e entradas poderia facilmente persuadir os patronos e visitantes a acharem que estavam prestes a chegar ao submundo. A experiência poderia ser ainda mais intensa se eles estivessem exaustos das longas viagens, confusos ou drogados. O pequeno rio que corre no subsolo representava o rio Styx. Talvez tivesse até mesmo um pequeno barco que levava os visitantes até a outra ponta, onde havia um santuário secreto que Paget chamou de "Antro de iniciação". Sibila estaria nesse santuário ou talvez fosse uma sacerdotisa imitando-a. As entradas secretas em "S" poderiam dissimular a presença dos novos iniciados e dar passagem direta para os sacerdotes chegarem mais rápido a outras câmaras. Ou talvez o complexo tenha sido feito baseado na história de Enéias e usado para converter os incrédulos. Um fato interessante é que Enéias não saiu pelo mesmo caminho que entrou no submundo. Segundo Virgílio, ele tomou um outro caminho mais direto para a superfície e o complexo de túneis faz exatamente isso, pois tem um caminho alternativo de saída que é muito mais rápido e direto também.


Paget afirmava ainda que uma das câmaras tinha características suficientes para provar que alguém poderia ter morado ali, como Sibila. O que ele nunca soube explicar é por que algumas câmaras tinham sido lacradas e quem ordenou a construção do complexo. Mesmo com tanto trabalho, os registros de Paget são até hoje contestados por diversas razões, mas principalmente pelo fato dele não ser um arqueólogo profissional e escavar por hobby. Isso sem contar que no dia em que iria reunir a imprensa para falar de suas descobertas, o presidente americano John F. Kennedy foi assassinado e toda a atenção do mundo se voltou para o outro continente.

Em 1965, com equipamento especial, o coronel David Lewis e seu filho investigaram o rio Styx. Descobriram que haviam duas fontes de água quente que desembocavam nele e que provavelmente ficavam nos campos de Phlegræan.

Uma das fontes que desemboca no Styx.

Desde então nada mais foi descoberto, mas o local está aberto para visitação de turistas. Claro que você não poderá ir muito fundo, mas poderá ter uma ideia de como o lugar carrega uma aura mística e sombria.

Quem sabe um dia encontraremos mesmo um portal para o submundo?


Para ver outras coisas estranhas e incomuns, acesse a nossa coluna de bizarrices!

Liuka

É uma verdadeira draga de coisas inúteis e ao mesmo tempo interessantes.

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