MadBizarrice: Spring Heeled Jack, o demônio saltador
Já imaginou topar com o capeta numa noite fria e escura? Na
Era Vitoriana esse tipo de ideia não era nada absurda, mas tão bizarra quanto é
para nós atualmente. Isso porque, apesar dos avanços tecnológicos (lembre-se de
que a revolução industrial veio nessa época), a superstição era também muito
forte entre as pessoas.
Os relatos iniciais
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Em uma noite de 1837, no vilarejo de Barnes, na Inglaterra,
um vendedor voltava para casa. Ele resolveu pegar um atalho que cruzava por um
cemitério e no meio do caminho notou uma figura no mínimo curiosa. Era um homem
alto, com nariz, orelhas e queixo grandes e pontudos. Os olhos brilhavam como
lanternas, na cor vermelha e ele, de alguma forma, conseguiu saltar por cima
de um portão de 3 metros de altura atrás do homem. Assustado, o pobre vendedor
correu como se não houvesse o amanhã.
A história se espalhou mais rápido que a peste negra na Europa medieval e isso acarretou em mais relatos igualmente bizarros. Os jornais o chamaram de Spring Heeled Jack, também conhecido na língua portuguesa como “Jack Calcanhar de Mola” ou “Jack Saltador”. A expressão “spring heeled” denota um tipo de sapato masculino da época que tinha um saltinho, mas também se refere à capacidade da criatura de pular como se tivesse molas (mola = spring em inglês). Os jornais adoraram a história e começaram a vender outros relatos menores sobre o caso, mas nada nunca foi tão intenso quanto o primeiro. Bom, pelo menos até começarem os ataques às moças.
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Outro relato foi de um ataque a um grupo de pessoas, cerca
de 2 mulheres e 1 homem. Assim que um estranho pulou sobre eles, todos
correram, mas Polly Adams acabou sendo alcançada pelo figurão que rasgou suas
roupas e lhe causou arranhões pelo corpo. Em choque, a pobre jovem desmaiou e
posteriormente foi encontrada por um policial.
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Um mês depois, Mary Stevens ia trabalhar em Lavender Hill
quando uma figura saltou sobre ela, a imobilizou, beijou seu rosto e a apalpou
com o que ela descreveu ser uma mão “fria e mole como de um cadáver”. Mary
gritou desesperada e a figura fugiu. Muito embora os residentes locais se
empenhassem, ninguém encontrou nada nos arredores. No dia seguinte, no entanto,
o figurão voltou por Mary para uma visitinha em sua casa. Desta vez ele saltou
em frente a uma carruagem, o que assustou o condutor que tentou desviar e bateu
o carro, se ferindo e provavelmente ferindo os cavalos também. O acidente
grotesco chamou a atenção das pessoas que relataram ver alguém saltando por
cima de um muro de 2 metros sem esforço e soltando uma gargalhada estridente enquanto fugia.
Uma terceira mulher foi atacada perto de Clapham Curch, mas
desta vez o agressor tinha deixado evidências: duas pegadas de 7 a 8 cm de
profundidade. Os investigadores concluíram na época que o figurão usava algum
tipo de mecanismo com molas nos sapatos.
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Um fato interessante que encontrei sobre os dois relatos a
seguir é que há duas versões de cada um bastante distintas na internet. Eu
francamente não sei qual é a verdadeira, se é que existe algo verdadeiro nessa
história.
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Cerca de um ano depois do primeiro relato, o Spring Heeled
Jack voltou a atacar. Aos arredores de Old Ford, próximo a Londres, a noite já
tinha caído. Uma série de insistentes batidas na porta foram ouvidas pela jovem
de 18 anos Jane Alsop. Era um evento incomum e ela teve receio em atender. Antes
perguntou quem era e uma voz masculina do outro lado respondeu que era um
policial. Também pediu para que ela trouxesse uma lanterna, pois supostamente
teriam pego o tal Spring Heeled Jack numa ruela próxima. Assim que ela tentou
abrir a porta com uma vela em mãos, alguém empurrou a porta com extrema força,
jogando a jovem no chão. A figura que apareceu era de um homem alto que vestia
um sobretudo escuro, chapéu e que segurava uma lanterna de luz fraca. De sua
boca saíam labaredas azuis, brancas e frias. O rosto pouco iluminado parecia
ter feições diabólicas, cujos olhos eram vermelhos e as orelhas eram pontudas.
Ele se agachou sobre ela e começou a rasgar as roupas da moça com uma navalha
afiada. Ao ouvir os gritos desesperados e ao ver a figura assustadora, as duas
irmãs de Jane correram para buscar socorro dos vizinhos. A figura levantou e
fugiu antes que mais alguém pudesse aparecer. Só o que restou foi uma moça em
estado de choque, roupas rasgadas e cortes por todo o corpo dela. O mais
interessante deste relato é que uma vizinha que morava em frente viu toda a
cena e confirmou toda a história. Era uma viúva chamada Freda Carrington que
disse ter visto o demônio pular por cima do telhado de uma casa enquanto fugia.
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Uma outra versão conta que o homem usava uma espécie de elmo
na cabeça e que as roupas eram justas, onde parecia haver uma estrutura de
tiras de metal como costelas por baixo do colete. Aqui, Jane não está caída no
chão, mas está na frente da casa. Ela tenta correr para dentro, mas é alcançada
pelo homem que a puxa pelos cabelos e rasga suas roupas com algo como garras.
Assim que consegue se desvencilhar, a irmã a puxa para dentro e tranca a porta.
Spring Heeled Jack continua batendo freneticamente na porta e depois foge
saltando pelos telhados vizinhos. Algumas pessoas ainda relataram ter visto o
maníaco deixar seu casaco para trás que foi pego logo em seguida por outra
pessoa, o que fez muitos suspeitarem que ele teria um cúmplice.
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O relato a seguir conta que alguns
dias depois ocorreu um novo ataque. Lucy e Sara Scales voltavam para casa à
noite seguindo pela Green Dragon Alley em Limehouse. Em determinado ponto, uma
figura horripilante apareceu bem diante dos seus olhos. Era novamente um homem
muito alto, que usava um sobretudo preto e que carregava uma lanterna. O homem
puxou Lucy pelo braço e a garota tentou se desvencilhar batendo nele, mas era
inútil. Ele a arrastou com força até a viela de onde tinha saído e os dois
sumiram, deixando a irmã Sara em pânico. Dois soldados que estavam de folga
vieram ao seu socorro e correram para a viela. Lucy estava desmaiada no chão e
só voltou a si dias depois. As roupas rasgadas e os cortes pelo corpo
denunciavam que Spring Heeled Jack estava à solta ainda.
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A segunda versão relata que na verdade
Lucy e Margareth Scales (note que o nome da irmão mudou) retornavam para casa
após uma visita ao seu irmão quando viram um homem parado adiante vestido com
uma capa negra. Quando elas passaram pelo figurão, de repente ele cuspiu chamas
azuis no rosto de Lucy, o que a fez cair no chão e convulsionar por horas. O
homem fugiu saltando pelos telhados, enquanto o irmão que ouvira os gritos de
Margareth tinha vindo socorrer as duas. Margareth descreveu o maníaco como um
homem alto, magro, muito bem vestido, usando uma capa negra e segurava uma
lanterna como as que os policiais usavam.
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Dois ataques em tão pouco tempo
chamaram a atenção das autoridades e a preocupação era iminente. Como capturar
uma figura com descrições tão macabras?
A carta misteriosa e a grande
caçada
O prefeito de Londres, Sir John Cowan, recebeu uma carta
assinada por alguém que se identificava como “Morador de Peckham”. O texto
contava sobre uma suposta aposta de 5 mil libras feita por um grupo de jovens
nobres, cujo propósito era que um desses jovens se fantasiasse e fosse
“assombrar” os vilarejos ao redor. Na carta ainda continham os lugares onde
ocorreriam os “ataques”. Aparentemente os ataques de fato aconteceram e cerca
de 7 moças haviam desmaiado, sendo que 2 delas teriam tido consequências
posteriores de um colapso nervoso incurável, tornando-se um fardo para as
famílias. Uma criada, ao ver o figurão diante de si, entrara em choque e até
aquele momento não tinha se recuperado.
Os jornais continuavam a publicar sobre o caso e outras
cartas de outras pessoas começaram a chegar para o prefeito. Todas elas
relatavam casos bizarros de aparições e pegadinhas de muito mal gosto. Alguns
ainda afirmavam que as moças eram machucadas por garras metálicas que o figurão
vestia nas mãos. Em outros casos, as pessoas tinham literalmente morrido de
susto, porém apenas um assassinato foi atribuído a Spring Heeled Jack.
Uma verdadeira caça às bruxas se iniciou. Grupos de busca foram formados e começaram a vigiar a cidade em busca do maníaco. A recompensa para quem o pegasse era boa. O respeitado Duque de Wellington, naquela época com mais de 70 anos, disse ter se deparado com o maníaco diversas vezes, mas nunca o pegaram. Cowan estava farto. Era hora de agir. Duas investigações policiais seriam importantes neste caso. A Polícia Metropolitana estaria a cargo de uma e a outra seria de responsabilidade de um membro da Patrulha de Bow Street, o James Lea, um famoso detetive da época.
Sobre o caso de Jane Alsop, Lea apurou que a jovem tinha bebido na véspera e ainda estava sob o efeito do álcool. Isso por si só poderia ter sido motivo para que ela tivesse confundido o rosto do agressor com algo mais demoníaco. Ele chegou ainda a interrogar diversos suspeitos, mas não obteve nada conclusivo, o que fez com que o caso fosse encerrado de repente por ineficiência dos procedimentos adotados na investigação. Isso não agradou a população local e iniciou-se uma histeria coletiva. Agora o Spring Heeled Jack era visto em cada canto por várias pessoas e várias vezes por dia. A criatura ganhou uma fama ainda mais mítica, sendo chamado de “O terror de Londres” (The Terror of London).
Histeria coletiva
Naquele mesmo ano os relatos pipocaram. As aparições variavam de um homem alto e bem vestido a uma criatura com chifres. Mulheres eram constantemente atacadas, algumas diziam que tinham sido estupradas e um pobre marinheiro quase foi linchado por uma multidão por simplesmente dirigir a palavra a uma mulher.
É claro que todos também tinham suas teorias de como e de quem era o agressor. Alguns diziam que um demônio teria escapado do porão de uma igreja, outros contavam que era um fantasma de um estuprador morto séculos antes e tinham ainda os que achavam que ele era o filho degenerado de um Lorde.
Os retornos
Com o passar do tempo o caso esfriou e as pessoas esqueceram. O Spring Heeled Jack se tornou apenas uma lenda local. Era uma época de transformações e avanços, então os londrinos não tinham tempo pra gastar com lendas.
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Porém, em 1845 surgiu um novo
relato vindo de Jacobs Island, ao sul do rio Tâmisa. Maria Davis, uma
prostituta, foi abordada por um figurão que vestia sobretudo e capuz. De
repente ele a atacou com garras metálicas e afiadas, deixando-a bastante
machucada. Em pânico, Maria pulou de uma ponte. Quando foi resgatada, revelou o
que tinha visto às autoridades: um homem alto, com chifres na cabeça e uma face
demoníaca. Ela ainda revelou que o viu saltar por cima de um prédio antes de
ataca-la. Seria um novo ataque do Spring Heeled Jack? Ninguém nunca soube
dizer.
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Outro relato igualmente estranho
veio à tona em 1877, no Quartel de Aldershot em Surrey. O lar de 10 mil
soldados era também o centro de comando do exército britânico. Já era de tarde
quando um sentinela guardava o portão norte. Ele então ouviu o barulho de molas
metálicas e avistou uma figura encapuzada e alta saltitando. O jovem guarda
tentou abordá-lo, mas num salto o figurão escapou por cima do muro do quartel. O
guarda revelou que os tiros pareciam não afetá-lo. Nas semanas seguintes os
guardas relataram terem visto e ouvido coisas estranhas ao redor do lugar.
Temendo o pior, o comandante distribuiu munição e redobrou a guarda, o que
resultou num guarda assustado atirando contra um suposto vulto sinistro. Na
verdade eram 3 cidadãos inocentes e um deles acabou morto. Os jornais então
começaram a divulgar que Spring Heeled Jack tinha retornado.
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Novamente começou uma histeria
coletiva e toda semana apareciam pequenos relatos sobre o figurão sinistro,
sendo que em um deles os moradores de um vilarejo tinham atirado com rifles e
quando as balas atingiam o Jack, este fazia um barulho metálico, como se as
balas estivessem de fato batendo em alguma placa de metal. Ele foi o culpado de
atacar carruagens, pessoas, de passar as noites pulando de telhado em telhado,
de assustar as pobres moças e em alguns casos teve a ousadia de aparecer para
grupos inteiros. Felizmente este caos durou bem menos que a primeira histeria e
logo todos esqueceram do maníaco sinistro.
Quase 70 anos após o primeiro ataque, por volta de 1888, Spring Heeled Jack voltou a ser notícia. Naquela época o Jack, o estripador tinha feito suas vítimas, mas o antigo maníaco voltou para competir. Seria Jack, o estripador, o mesmo maníaco demoníaco de mais de 3 décadas antes? A lenda ganhou força quando um jornal contou que o maníaco saltava pelos telhados dos prédios para escapar da polícia. Entretanto os casos grotescos revelavam que tudo ia além de uma simples lenda. A coisa toda era macabra demais e as autoridades levavam a sério, o que as fez descartar imediatamente a possibilidade de ser um retorno tardio de Spring Heeled Jack.
Spring Heeled Jack centenário
Acredite se quiser, mas em pleno século XX houveram mais relatos de aparições do maníaco. Em 1904, uma figura alta e veloz apareceu saltando do chão ao topo de um prédio diante de um grupo de 100 pessoas que estavam nos arredores da estação William Henry em Liverpool em plena luz do dia. Ninguém entendeu o que aconteceu, mas logo vieram as teorias. Spring Heeled Jack tornou a ser notícia. Nas décadas seguintes ele não foi esquecido, sendo inclusive relatado em 1967 um figurão atacou duas jovem em Trafalgar Square. Em 1976 um maluco saltou sobre o teto de um carro e depois para cima de uma estátua no Hide Park e em 1997 um bando de turistas flagrou uma figura saltitante nas margens do rio Tâmisa.
Um olhar cético
Mas seria possível criar um sapato com molas? Sim e os alemães por pouco não obtiveram sucesso durante a segunda guerra. Eu sei que parece mais coisa do Inspetor Bugiganga, mas é possível. O problema que os alemães encontraram foi a aterrissagem que geralmente era catastrófica, pois acabava em ossos das pernas quebrados e quadris deslocados. Nada impedia de os vitorianos criarem algo mais arcaico, já que era a era das invenções.
Hoje nós temos botas especializadas para um esporte específico, o Skyrunner, e que podem chegar a mais de 2 metros de altura em um pulo. Não é muito comum no Brasil, mas na Europa e nos Estados Unidos é uma febre.
Também tem os kangoo jumps (ou botas suíças) que são botas com uma espécie de mola embaixo e que são usadas principalmente pra fitness e corridas.
Mas, claro, nenhum desses dois chega nem perto do design dos sapatos da Era Vitoriana, o que faz a gente questionar a altura dos saltos do Spring Heeled Jack.
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A teoria mais aceita, entretanto, é de que algum jovem rico
engraçadinho resolveu fazer brincadeiras de mau gosto. Os outros casos, se é
que são verdadeiros, podem ter sido uma confusão de ataques de estupradores e
ladrões que já eram bastante comuns pra época. Vamos contar também com a ajuda
do sensacionalismo, que provavelmente manteve a lenda viva e atingiu em cheio a
imaginação das pessoas. Por fim, a histeria coletiva deu um poder quase mítico
a essa figura.
Literatura e cultura
Spring Heeled Jack é um tema abordado constantemente na literatura, tendo ganhado até mesmo menção em séries de prestígio internacional. Na Era Vitoriana ele se tornou uma lenda tão forte que era representado em teatros de pessoas e fantoches constantemente. Ele se tornou parte do folclore inglês, tendo quase a mesma importância do Saci Pererê aqui no Brasil.
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Aliás, o termo “Spring Heeled Jack” é usado pelos londrinos
para descrever fenômenos sobrenaturais ou ameaçadores.
Veja mais:
Carta anônima ao prefeito Cowan de Londres na íntegra (em inglês): link
Veja mais:
Carta anônima ao prefeito Cowan de Londres na íntegra (em inglês): link
Para ver outras coisas estranhas e incomuns, acesse a nossa coluna de bizarrices!
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