MadCurioso: o que é uma carranca?
Você certamente já ouviu falar das carrancas, não é mesmo? As mais conhecidas são aquelas bizarras com figuras que mais parecem demônios e que as pessoas geralmente colocam em casa pra "afastar coisas malignas" (porque certamente aquele negócio é tão feio que até os malignos se assustam). Mas a verdade é que as carrancas sempre foram peças, obras de arte incríveis que davam um toque especial em navios antigos.
Um ancestral com uma função nada nobre
O ancestral da carranca provavelmente foi o ariete que nada mais era do que um tronco gigantesco com uma cabeça de carneiro esculpida na ponta ou simplesmente tinha uma ponta afiada. Essa arma podia ser tanto carregada por dezenas de soldados, como ser levada em uma estrutura com cordas e correntes que permitiam o movimento do tronco para frente e para trás, assim era possível arrombar qualquer portão ou muro de fortaleza, castelo ou cidade (e também matar qualquer desavisado que passasse por trás dessa coisa). Posteriormente colocaram um ariete desse na proa de um navio chamado
trirreme. Proa, só pra lembrar, é a parte da frente de um navio ou barco. Sendo assim, o
trirreme podia literalmente atravessar um navio inimigo porque o ariete estraçalhava tudo pela frente.Os antigos gregos usavam o trirreme como se não houvesse o amanhã, o que lhes rendeu vitórias e terras novas. O ariete ainda é utilizado hoje, principalmente pelos militares, mas hoje a versão é bem mais compacta (e segura).
Decoração e nobreza
Ninguém sabe ao certo quem usou primeiro como decoração. Os vikings já usavam em seus navios, mas a coisa só tomou fama mesmo entre os séculos XVI e XIX (16 e 19, criatura!). Nessa época os galeões começaram a introduzir a ornamentação da proa e com isso a carranca começou a ficar mais conhecida. Eram estátuas que ficavam na haste ou gurupés dos navios, feitas de madeira maciça e que podiam ser pintadas ou não.
A figura sempre mudava de um navio para o outro e podia ser desde uma divindade até um membro da monarquia. Carranca, figura de proa ou leão de barca são os nomes dados a esses objetos.
Marca registrada
O fato é que essas esculturas eram verdadeiras marcas registradas dos navios e serviam tanto pra identificação, como objetos de superstição dos marinheiros.
As figuras, como dito anteriormente, podiam representar os mais diversos temas: mulheres da monarquia, animais, divindades, sereias, escudos e até mesmo monstros. A maioria era retratado de corpo inteiro.
Numa sociedade onde quase ninguém sabia ler e escrever, as carrancas eram uma forma inteligente de identificação do barco. O problema, é claro, é que nem sempre era evidente o nome do barco só pela imagem dela, o que se tornava um problema para alguns. Elas também podiam indicar o grau de nobreza do dono do navio de guerra. Quanto mais rico, mais requintada era a carranca.
Se eu tivesse um navio, certamente teria um unicórnio como carranca! |
As mulheres eram as figuras mais famosas e se por um acaso representassem uma rainha, significava que o navio vinha das terras de onde aquela monarca reinava. Claro que homens também podiam aparecer, mas eram mais incomuns.
Podia também ser uma homenagem a alguma parente do dono do navio (esposa, filha, mãe, etc).
Outros significados
-As
vigias que nunca dormiam: para os marinheiros, os navios tinham olhos
que os guiavam sobre a água. Essas carrancas representavam tais olhos,
vigilantes e muito atentas que podiam indicar o caminho certo ou os
perigos logo à frente.
-O espírito do navio:
alguns marinheiros diziam que cada navio tinha um espírito, que sempre
estava vivo e que essas carrancas eram a representação deste espírito.
-Melhor
do que trevo de 4 folhas: a ironia é que mulheres não eram permitidas
dentro dos navios porque acreditava-se que trariam má sorte, entretanto
esculturas delas pelo navio, principalmente na proa, traziam sorte. Vai
entender? Com o poder de acalmar os mares, as tempestades, de desviar o
navio dos desastres, elas eram muito bem cuidadas. Entretanto, qualquer
dano podia significar má sorte pra tripulação inteira e por isso os
marinheiros corriam para pegar pedaços das carrancas e guardavam consigo
para "forçar" a sorte a ficar ao seu lado.
-Fora do meu navio, espíritos zombeteiros! |
Os motivos que pesaram na queda do uso das carrancas
Literalmente pesaram! Conforme os anos foram passando, mais e mais navios eram construídos e havia uma certa disputa pela mais bela e incrível carranca. O resultado disso foram carrancas que chegavam a pesar toneladas e muitas vezes haviam 2 réplicas delas, uma de cada lado do casco! Não precisa ser um engenheiro naval pra saber que isso afetou e muito a flutuabilidade do navio, né? Finalmente no século XVIII (18, mamífero!) as carrancas sofreram mudanças e começaram a diminuir. Mas não era só o tamanho e o peso que prejudicavam. O custo começou a ficar cada vez mais elevado até um ponto que a carranca era tão cara quanto o navio inteiro. Em 1800, elas caíram em total desuso.
Com o fim das guerras Napoleônicas, as carrancas ressurgiram, mas desta vez só eram retratadas da cintura para cima. Os navios de 1850 e 1860 chegaram a ter novamente as esculturas de corpo inteiro, mas eram muito menores e mais leves que as primeiras.
Quando os navios a vapor surgiram e deixaram de lado os veleiros, as carrancas caíram em total desuso e nunca mais voltaram a ser utilizadas, já que ninguém mais tinha um navio a velas. Apesar disso, os navios a vapor tinham adornos com escudos de armas ou frisos dourados na proa que foram utilizados até a Primeira Guerra Mundial.
Hoje, é claro, são apenas utilizadas em réplicas de navios antigos. Não há porque os navios militares ou de carga carregarem consigo aquelas imagens. Por isso se tornaram símbolos tão especiais de uma era de ouro da navegação!
As carrancas do Brasil
É, o Brasil nunca fez nenhum navio veleiro. Na verdade, o que nós tínhamos veio da própria frota de Portugal na época da colonização e quando começamos a construir algo que pudesse flutuar na água, ele já tinha um motor a vapor dentro. Enfim, ter e construir são coisas distintas. Hoje temos o glorioso NVe Cisne Branco (U-20) que é um navio veleiro da marinha brasileira, porém foi construído na Holanda. Tem alguns outros menores que são utilizados para que novos marinheiros aprendam a navegar da forma clássica antes de já entrarem num navio moderno. É como aprender a desenhar com lápis antes de aprender a desenhar com o mouse, entende? Só que nenhum tem carrancas. Entretanto, lá no rio São Francisco, um dos maiores rios do país, desde "1800 e guaraná que nem existia, só a rolha" as embarcações que são muito menores do que os navios imperiais e de guerra carregam consigo as carrancas. O que começou como uma peça decorativa cujo objetivo era chamar a atenção do consumidor para o barco em questão, hoje é símbolo de pura superstição. De origem africana ou ameríndia, as carrancas conseguiram a proeza de saírem dos barcos para as lojas de produtos artesanais e viraram amuletos no país todo. Os carranqueiros, ou seja, os artesãos que as esculpem insistem que elas tem o poder de afastar maus espíritos. Ainda sim, as embarcações que as usam alegam que elas não só espantam os maus espíritos como também impedem que afundem, acabam com tempestades e atraem mais peixes. Atualmente os maiores polos de produção são as cidades de Petrolina, em Pernambuco, Pirapora, em Minas Gerais, e Santa Maria da Vitória, Juazeiro, na Bahia. As carrancas brasileiras são únicas, na verdade, só existem aqui e chamam muito a atenção dos estrangeiros (também, de quem não chamam a atenção né?). São parte importante da cultura e folclore do Brasil.
-Mas porque são tão grotescas e feias?
Vou deixar aqui um "causo" do carranqueiro Chico Chagas que contou à equipe da Expedição Américo Vespúcio:
Meu avô sempre ia pescar com meu tio-avô nuns rios que tinham aí pra cima. Meu tio sempre falava pra tomar cuidado com o caboclo d'água, uma mistura de homem e macaco que vira a canoa para comer as pessoas. Meu avô num acreditava em nada disso. Mas um dia ele tava pescando, a canoa começou a bambear. Quando ele viu uma mão agarrada na borda, ele tirou o facão e cortou. Era a mão do caboclo d´água, ela era preta com umas coisas assim no dedo que nem pato. Ele guardou isso até as vésperas de sua morte. A carranca é pra isso, o caboclo d´água vê aquela cara mais feia que ele e vai embora.
Isso aqui é um caboclo d´água:
Isso é o legal da carranca, ter esses 2 lados da moeda: o místico e o ornamental. Símbolos de uma verdadeira era de ouro da navegação mundial, principalmente no que se refere à colonização e exploração por parte da Europa no resto do mundo, as carrancas existem para nos lembrar que apesar de tudo os navios tinham lá a sua glória e as suas crenças, que eram feitos e movidos por gente. O Brasil ainda mantém essa pequena memória, embora um pouco abrasileirada. Mas ta valendo, não é mesmo?
Ficou ainda mais curioso? Então veja o que já publicamos de curioso aqui!
Excelente artigo! Completíssimo e repleto de curiosidades extras. Foi de grande ajuda.
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