O inferno do estupro - um desabafo
Jurei pra mim mesma que não iria tocar no assunto, mas a
notícia ficou quicando na minha cabeça o dia inteiro por mais que me mantivesse
longe das mídias. Jurei pra mim mesma que não diria nada neste blog, que não
compartilharia uma gota sequer da minha opinião, mas não dá. Simplesmente não
dá. Eu preciso (e muito) desabafar.
Assim que você ouve a notícia de que 33 homens estupraram uma garota de 16 anos no Rio de Janeiro e tiveram a ousadia de postar na internet, a sua primeira reação é a raiva e uma espécie de ódio tão imenso e
grotesco que você tem vontade de correr até o Rio de Janeiro (moro em São Paulo),
pegar um por um e matar sem dó nem piedade da forma mais dolorosa possível. Pra
aliviar isso você esbraveja, resmunga, amaldiçoa cada um dos monstros e reza
pra que todos morram logo e caminhem direto pro inferno, onde espera que o próprio diabo cuide deles por toda a eternidade.
Quando você finalmente se acalma depois de quase 1 hora de
ódio profundo e intenso, começa a refletir sobre os momentos de terror que a
garota deve ter passado. O único depoimento que temos dela por enquanto é de
que acordou com os 33 malditos ao seu redor. Não consigo sequer imaginar
acordar com uma dor violenta e ao meu redor ver 33 homens nus ou seminus rindo
e se divertindo. Você se pergunta o que ta acontecendo e só então se dá conta
de que a dor violenta vem de uma região específica. A quantidade monstruosa de
sangue denuncia a barbárie. Provavelmente entraria em pânico, me rebelaria,
choraria, ficaria louca! Ela deve ter se recolhido, envergonhada, assustada e
temendo uma represália caso fizesse algo que os desagradasse. Isso explica por que ela não foi denunciar e sequer tinha intenção de fazê-lo, já que as autoridades tiveram que buscá-la depois de uma denúncia anônima. Isso se chama medo.
E os jornais dizem que ela era drogada, como se isso
transferisse a culpa do estupro dos estupradores para a garota, como se isso os
eximisse. No Facebook, entretanto, a história é outra. Quem conheceu a garota
desmentiu essa história e compartilhou. Mas eu não entendo por que ela sendo
drogada ou não, eles teriam menos culpa. Estupro é estupro.
Cartaz que pode facilmente ser encontrado nos vagões. |
Eu já tive experiências horríveis com assédio no metrô
lotado e na época não tinha a grande campanha que tem hoje de combate a assédio
sexual nos vagões. Quando percebe que há algo estranho, você paralisa. Tudo
passa na sua cabeça e você não sabe qual atitude tomar: se grita, se chora, se
corre, se fica, se empurra o filho da puta ou se agarra o pênis dele e torce
até sair na tua mão. Tudo dura menos de 5 minutos, mas parecem 10 horas. Quando
finalmente acaba, quando você sai do vagão e continua a sua jornada até o
trabalho, faculdade ou até pra casa, você sente vergonha, ódio e
arrependimento. Você deveria ter agido porque se ele teve coragem de fazer
aquilo contigo, terá de fazer com outras. Você então jura que vai reagir da
próxima vez e...acaba não reagindo de novo. Agora tem menos coragem ainda de dizer o
que aconteceu. Você acha que vão pensar que “você gosta de ser assediada” e por
isso não reage. A verdade é que você literalmente ficou paralisada de medo. Sofre calada, tenta se recuperar de alguma forma e seguir com a
vida. Mas andar no metro de novo se torna uma experiência penosa. Cada um que
passa ou fica atrás de você é uma nova ameaça e todo aquele medo vem à tona
novamente. Você sabe que não é culpada. Ao contrário do que poderiam pensar, você
tava de calça jeans e camiseta, você não usava maquiagem, você só carregava uma
bolsa “mensageiro” e calçava um par velho de tênis. E mesmo assim foi a “escolhida”.
Demorou 4 anos pra eu finalmente conseguir falar do assunto e mesmo assim
detesto tocar nessa parte da minha vida.
E eu penso como seria um estupro. Eu penso porque sei que
corro o risco cada vez que saio de casa. Tento sempre voltar cedo ou até um
horário que tenha um pouco de gente na rua, como a hora da saída da maioria das
faculdades. Vigio as áreas sem iluminação e tomo cuidado com os becos. Ando sempre
do lado que tem mais prédios, já que tenho a falsa sensação de que os porteiros
poderiam me socorrer. Falsa sensação porque o cara às vezes sequer ta prestando
atenção na rua de fato. Além de tudo isso, não me meto em lugares que não
conheço tarde da noite. Meus amigos já me conhecem, zombam, mas sabem que tenho
razão. Me “liberam” sempre que dá as 10 badaladas. Me chamam de “Cinderela das
10”. Eu faço de tudo, mas nada me garante que esteja segura.
Comprei recentemente uma pequena faca do tamanho de um
cartão de crédito. Fico com ela no bolso. É afiada o suficiente pra machucar
alguém, apesar de que duvido que seja letal, mas provavelmente me daria tempo
de fugir e pedir socorro (espero!). E me pergunto se um spray de pimenta seria
mais útil. Daí me dou conta do inferno que é tudo isso. Eu tenho que andar armada
pra não ser atacada? Quer dizer, se eles liberarem as armas de fogo de novo pra
população, eu seria uma forte candidata a ter uma. Faria todos os cursos de
tiro, preencheria todos os requisitos só pra ter a falsa sensação de que se
algum cretino aparecesse, eu poderia me defender de forma apropriada. Abriu o
zíper, levou uma bala na testa. A verdade é que eu não quero matar ninguém. Só quero
viver em paz. E pensar que antigamente andava com o meu molho de chaves, sendo
que botava cada chave entre dois dedos e criava um soco inglês improvisado from
hell. Se aproximou demais? Te furo o queixo! Apesar de tudo, nunca achei isso
muito efetivo, até porque as chaves machucavam a minha mão depois de alguns
minutos segurando escondida dentro do bolso da calça, jaqueta ou moletom.
Há quem diga que é assim mesmo, que os homens funcionam
dessa forma, que é uma doença, mas que a vítima também tem lá a sua parcela de
culpa. A vítima não teve, não tem e não terá culpa. Os homens tem que aprender
que não é não. E se eles funcionam assim, então está na hora de falarmos dos
homens de forma muito séria. Eles tem que mudar, evoluir, aprender a se
controlar e entender que nenhum corpo feminino lhe pertence, nem mesmo quando se casam. Isso aqui não é
uma selva, minha gente. Porque quando 33 homens se juntam, estupram uma garota
de 16 anos a ponto de romper sua bexiga e lhe causar uma forte hemorragia (provavelmente
o útero dela foi destruído) e depois tiram fotos e gravam vídeos satirizando
a situação, isso não é barbárie, é demoníaco! Passou dos limites da doença e
chegou a um nível insuportável, algo que buga a mente de todo mundo.
A parte vermelha é a virilha da garota toda ensanguentada. |
E eu quero acreditar que esses homens são uma minoria, que
eles não representam toda a “categoria” que existe nesse mundo e que o amor vai
vencer no final das contas, mas ta cada vez mais difícil. Vi homens se
desculpando nas redes sociais, pedindo para que nós mulheres não julgassem
todos só por causa de alguns e vi também os que culpavam a garota por ter
bebido e se drogado. O que mais me irritou certamente foi ver que o próprio
namorado da garota a culpou por tudo. Que tipo de homem é esse que não protege,
não ajuda e não compreende uma das pessoas que supostamente mais ama? Nem um
animal seria tão cretino.
E coitada de você se for lésbica! Lembro que há uns anos
atrás tinha um maluco no Paraná que pregava em seu site de nome “O perdedor mais foda do mundo” o estupro corretivo de mulheres homossexuais e o extermínio
de homens também homossexuais. Foi preso depois de tentar um ataque em massa na
universidade federal de Brasília e só Deus sabe o que aconteceu depois disso,
se já foi liberado ou não. Segundo esses imbecis que provavelmente tem vácuo no
lugar do cérebro, quando a lésbica é penetrada por um homem e engravida, ela é “curada”.
Só esqueceram de avisar isso pra Daniela Mercury e pra mais uma legião de
mulheres que achavam inicialmente ser heterossexuais e depois se descobriram
lésbicas, muitas já com filhos. O caso é que a coisa ta tão feia que os homens
gays também são atacados por estupradores que desejam “ensinar uma lição” a eles.
Muitos são mortos logo depois do estupro. Quer dizer, como confiar numa raça
que ataca a si própria? Homens gays não deixam de ser homens, só muda a
orientação sexual. E você é estuprada em um ônibus na Índia, em um consultório no
Brasil durante um procedimento cirúrgico, em um protesto contra o governo no
Egito e quando você só ta tentando fugir da guerra e ajudar a sua família de
refugiados na Europa.
Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma
mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. Isso é grave, é infernal! E em
muitas vezes a vítima conhecia os estupradores, ou seja, o cara estupra quando
tem oportunidade. E só nos resta confiar que os juízes possam condenar
adequadamente, mesmo sabendo que a legislação tem brechas o suficiente pra
liberar todos os 33 depois de poucos anos de confinamento. Serão 33 homens estupradores
que estarão de volta às ruas e não vai demorar muito pra eles repetirem a dose,
seja com estranhas, seja com suas esposas ou namoradas. Assim como a garota, elas provavelmente terão medo demais pra denunciar e eles continuarão rindo e caçoando.
E nós? Bem, nós ficaremos aqui assistindo o horror e esperando
que amanhã terminemos o dia intactas e bem. Enquanto isso a faquinha vai
continuar no meu bolso até segunda ordem.
Liuka,conheci seu blog através de outra noticia (sobre o dakhma na india) e acabei querendo conhecer mais assim acabei aqui...Bom,assim como vc eu acredito no amor e que ainda há esperança...Não podemos deixar de acreditar nisso...e esses "homens" que fizeram essa bestialidade,não são homens nem humanos, são vermes! é revoltante... ainda mais pra mim pois Conheci uma pessoal que já passou por isso.
ResponderExcluire desculpe eu li seu post e quis comentar.
Fique à vontade para comentar, Bruno! E obrigada pelas palavras amigas! :)
ExcluirA gente não consegue força p/ se expressar... Acho que assim como você, todo mundo que escreve tá querendo colocar pra fora por meio de um texto, mas tá sendo muito difícil. 30 pessoas é muita gente. Olha, vou tentar contar uma só, mas acho que não vai melhorar nada. Minha dúvida é se isso só está chocando porque chegou a vazar na Internet, ou acontece o tempo todo (nesse nível de bestialidade) sempre sendo encoberto.
ResponderExcluirHá uns anos tava tendo uma "festa" de Ensino Médio perto de onde eu moro. Uma mina tava desmaiada, não lembro exatamente, deve ter bebido demais. Enfim, um garoto tava levando ela no colo junto c/ vários vindo atrás... Um cara que tava voltando do trabalho por puro reflexo (como ele mesmo disse, se tivesse parado p/ pensar não saberia o que teria feito) falou p/ pararem, perguntaram se ele conhecia, ele inventou que era uma parente. Ficaram nas perguntas, ele foi tentando enrolar eles dizendo que era primo e tal, no final o moleque se cansou e jogou a menina. Ela caiu de testa no chão, teve que levar ponto. Ela teve sorte?
É uma pena que nem tenhamos histórias que possam nos animar, acreditar que é melhor. O que nós devemos fazer? Vejo que o seu texto/desabafo terminou da mesma forma, sem saber o que fazer em um contexto tão degradante. Acho que continuar o que estão fazendo é o único caminho. Tendo voz e tentando ter voz. É muito estranho terminar textos assim.
Esses textos são apenas reflexos, como você disse, da nossa mais pura indignação.
ExcluirSoube hoje que outra menina de 17 anos foi estuprada por 7 homens no Piauí e à força mesmo, ou seja, nem tava dopada ou drogada e tudo aconteceu no mesmo dia do caso do RJ. E parece que é moda "sequestrar" uma menina dopada ou bêbada e estuprá-la. O que está acontecendo com os homens? Por que até os garotos fazem isso? Não consigo entender a mente dessa gente, nem como conseguem dormir à noite depois de um crime desses.
Vez ou outra ouço essas histórias e me arrepio. Esse caso do RJ foi só a gota que faltava pra eu estourar, por isso desabafei aqui. E o pior: eu sei que o perigo pode estar bem perto de mim. Veja só, se fui vítima de assédio no metrô, então poderia ser facilmente de um maníaco na rua. Além do mais tem uma certa estação de metrô perto de casa que tinha 2 estupradores que agiam sempre de noite e próximos dela. Um foi pego recentemente, um cara de 2m de altura, gordo e agressivo. Uma câmera de segurança e uma vítima que conseguiu escapar foram essenciais pra captura dele. O outro ninguém sabe quem é e já fez outra vítima no fim de semana passado.
Não me sinto protegida, mas ainda bem que tem homens que não são assim. Acredito que você seja um deles e fico contente com isso. Não se corrompa, Douglas, por mais tentador que seja.
Liuka, não é tentador ser um estuprador. É horrível. No máximo teria que estar surtado, mas é pra isso que serve educação, moral e afins, pra reconhecer o que não se faz. De qualquer forma, eu estava com essas coisas rodando fortemente na minha cabeça, apenas ao ler sua resposta finalmente me desfiz em lágrimas. Eu não gostava de Feminismo por causa de seus exageros e até algumas futilidades, mas agora estou vendo como medidas extremas p/ uma situação extrema. Os exageros podem ser resolvidos depois. Não é agora que vou formular um texto, queria te agradecer pela sua coragem de, como tantas outras, escrever um depoimento pessoal, e principalmente ter respondido o meu comentário, ajudou.
ResponderExcluirE LEMBRE-SE! Respondendo a sua pergunta, não é "o que está ACONTECENDO com os homens?", ELES SÃO ASSIM! Temos todo um histórico de bestialidade, e no que se trata de estupro, ele SEMPRE esteve incluso. Vou procurar alternativas, finalmente achei um ponto que me aliviou, precisamos de novos homens. Sensibilidade é sinônimo de viadagem e inteligência de nerdice, ninguém enfrenta ESTUPRADORES se sentindo um bosta, se aliando ao Feminismo c/ cabeça baixa e s/ um pingo de autoestima por se sentir um homem melhor, não serve p/ quase nada. Estou até pensando em reaver uma estória que eu havia escrito (há 3 anos atrás) sobre uma prostituta que era assassinada e eu tinha abandonado por ser extremamente cínica e violenta temendo as polêmicas. Estou falando c/ algumas amigas feministas, conforme eu começar a seguir caminhos p/ ver o que posso mudar vou te comunicar por aqui, de verdade. Um forte abraço.
Vou confessar que o feminismo ultimamente tem tomado rumos que me desagradam também, mas é claro que eu ainda sou adepta de muitas ideias desse movimento. Agora, se o meu depoimento ajudou pelo menos uma pessoa a abrir os olhos, já me dou por satisfeita. E um homem ainda! Fantástico!
ExcluirVi toda a comoção na internet e na mídia em geral. Pareceu muito boa e bem forte. O caso deve mudar alguma coisa nas leis, talvez uma punição mais severa seja aprovada. Não vai resolver, mas pode dar um pouco de conforto às vítimas.
Ainda tento manter a fé na humanidade. O amor há de vencer.
Vamos manter contato! E obrigada mais uma vez pelo apoio.